Elza Soares não sobe mais no palco. O palco é que a recebe, solenemente. Cortinas pretas são instaladas para que ela já esteja lá, em sua cadeira de rodas-trono, quando se abrirem para a plateia. Foi assim em Paraty, na quinta edição local do MIMO, o festival de música que nasceu em Olinda, e que percorre anualmente as cidades históricas do Brasil.
A voz já é um fio rouco, o requebro acabou, acabaram-se as improvisações rasgadas, os agudos afinados. Sentada no trono, no alto de um pedestal decorado com plásticos pretos que dão a impressão de ser a calda de seu vestido, a mulher do fim do mundo canta o seu fim. Falou pouco, não sorriu uma única vez. Havia na sua expressão a tristeza dos que partem, com a força de vontade de quem ainda tem coisas a dizer.
O primeiro recado foi para as mulheres; “Prestem atenção, mulherada! Chamem o 180 se algum homem bater em vocês. Denunciem. Temos aí a lei Maria da Penha. Chega de violência doméstica”. A plateia feminina fez o coro: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, da música “Maria da Vila Matilde”, uma referência ao lugar onde ela nasceu e às surras que levou do primeiro marido.
Aos 78 anos de idade, Elza sofre de um problema na coluna que a impede de andar. Uma amiga comentou do meu lado: “A velhice é uma tristeza, coitada!”. Coitada nada. “A Mulher do Fim do Mundo”, álbum lançado no ano passado, é a consagração final de uma das maiores cantoras do Brasil. Mas é, também, um ato de resistência, um protesto, uma lição de vida, um exemplo de coragem, que fica para todas as gerações que a admiram e aplaudem.
Elza teve motivos de sobra para sofrer depressões profundas e desistir de tudo. Miserável na infância, casou-se aos 12 anos, foi mãe aos 13, perdeu os dois primeiros filhos, aos 20 ficou viúva, deu uma filha para adoção para salvá-la da fome, e quase morreu de culpa. Aos 30 e poucos juntou-se com o famoso jogador Garrincha, sofreu todo tipo de preconceito por causa da união; em 1983 perdeu Garrincha e, logo depois o único filho que teve dessa relação tumultuada.
Pensou em desistir da carreira, mas quem é majestade tem sempre um séquito de admiradores para salvar o trono. Caetano Veloso gravou com ela, em 1984, a música “Língua”, e todos os países que falam português renderam homenagem à rainha negra do Brasil. Em 2012, reaparece na cena musical brasileira com o samba “Subindo a Ladeira”, de um compositor mineiro ainda desconhecido. Generosamente dividiu seu brilho com Vander Lee, que morreu recentemente, cavando ainda mais o buraco das perdas no coração da cantora.
Mas Elza Soares não parou para chorar nem a morte de Vander Lee, nem a de seu filho mais velho, ocorrida em 2015. Preencheu o buraco com as obrigações do projeto “A Mulher do Fim do Mundo”, também um presente de outros jovens súditos: um grupo de músicos paulistas que fez para ela o primeiro CD com canções inéditas de toda a sua longa carreira. Elza os apresenta no final do show, com carinho maternal.
É quando os músicos param de tocar e postam-se humildemente ao pé de sua cadeira de rodas-trono, em reverência e gratidão. Elza Soares, de peruca e batom roxos, repassa com os olhos um a um aqueles músicos, emocionada e altiva. Então, à capela, canta (quase declamando) a música que dá nome ao seu, possivelmente, último trabalho:
“Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim/Eu vou cantar/ me deixem cantar até o fim”.
Foto: Agreste Digital - Pernambuco
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