Resumo da semana passada: Estafa, insatisfação e um tempo para balanço. A coragem de chutar o balde
Ao voltar da Índia, depois de pedir demissão do meu último emprego, levei três carteiras de trabalho para o INSS analisar meu pedido de aposentadoria. Enquanto esperava a burocracia, resolvi viajar pelo Brasil, procurar um novo lugar para morar. Porque o desejo de mudança era demolidor. Nada que eu tinha construído fazia mais sentido. Brasília não fazia mais sentido. Estava cansada de cidade grande, da dependência de carro, dos altos custos de vida. Estava cansada do Cerrado, da seca, das despesas de manutenção da chácara. Havia um plano antigo para ela, uma entidade fictícia para uma vida em comum com amigos da mesma faixa etária, solteiros e sem filhos como eu. Tinha até nome a organização: ASVPQP (Associação Senil Vovô é a Puta que Pariu) kkkk.
Mas a crise era minha, não deles. Ainda não era tempo de juntar a galera. Onkotô? Saí por Minas e pelo Rio de Janeiro atrás de um lugar que me tocasse o coração. Buscava o oposto do que tinha vivido nos últimos 28 anos. Queria mar, umidade, matas, cachoeiras, o conforto de uma cidade pequena, porém próxima de um grande centro urbano. Acabei escolhendo Paraty, que tinha um pouco das minhas duas origens: o casario colonial de Minas, aquela atmosfera provinciana e acolhedora, e a diversidade cultural de Brasília, com gente do mundo inteiro e o sotaque de várias línguas. Não conhecia ninguém na cidade. Mas logo fiz amigos, nos eventos promovidos pelo SESC e pela Casa da Cultura.
Decidida a ficar na cidade, aluguei uma casinha bem fofa e totalmente mobiliada, pus à venda a chácara de Brasília e comecei o processo de desapego pelas pequenas coisas: roupas, sapatos, louças, recordações de viagens, CDs, DVds. A intenção era esvaziar o imóvel para o novo dono. Mas a venda não vingou e eu resolvi alugar a chácara do jeito que estava: mobiliada e decorada. Apareceu um inquilino conhecido, de confiança, e tudo deu certo. A renda do aluguel de lá cobria o aluguel em Paraty. Para aproveitar os dois quartos excedentes, iniciei um pequeno negócio de hospedagem, os amigos vieram, eu descobria as paisagens mais linda nos arredores, com eles e para eles, e a vida ficou muito boa de novo, zero stress.
Um ano depois o inquilino se mudou e encontrei outro, que foi muito correto por dois anos. Depois começou a pagar com atraso, a emitir cheques sem fundo, e quando botei um advogado nas negociações ele abandonou a casa, levando todas as minhas coisas. A polícia não foi atrás, a justiça também não, mas tive a sorte de ele não estragar demais a propriedade, e a pus à venda novamente. Com o roubo, a possibilidade de retorno àquele lugar tornou-se inviável. Não havia mais cama onde dormir, nem sofá, nem fogão, nem geladeira, roupas de cama, toalhas, nada.
Em um mês fechei negócio e fui a Brasília para entregar a chácara aos novos donos. A minha alma havia se evadido do lugar. Os quadros que eu vinha colecionando desde que começara a trabalhar, os móveis garimpados em antiquários, as taças de vinho tantas vezes levantadas em brindes com os amigos, tudo criava uma atmosfera de mim que se perdera. Até os vasos de plantas da varanda e as touceiras de orquídeas amarradas nas árvores o inquilino havia levado. Ele roubou uma história inteira de mim. A minha mais bonita e concreta realização até aquele momento.
Em um dos quartos encontrei centenas de álbuns de fotografias que eu havia deixado guardados em caixas na parte superior do armário. Revirados no chão, abriam-se fora da ordem cronológica, embaralhando minhas lembranças. Folheei velhas imagens de mim em todas as idades, sequências da implantação da chácara, registros de festas, da floração dos jardins, os inúmeros cães e gatos que viveram ao meu lado, a produção de hortaliças e frutas, a paisagem em torno, as viagens. Não dava para organizar tudo novamente. Nem havia espaço para tanta recordação em minha nova vida. Fechava-se o ciclo Brasília.
Apenas a estante de livros ficou intacta. Mais de mil títulos de boa literatura continuavam lá, pedindo para serem lidos por outras pessoas. Levei-os ao açougue T-Bone, cujo dono, alfabetizado aos 17, ficou tão encantado com a leitura que criou a primeira livraria/casa de carnes que se tem notícia no mundo. E não satisfeito, montou estantes nas paradas de ônibus, aonde meus livros foram morar.
Separei algumas fotos e livros de paisagismo e mandei para a casa da minha mãe, até amadurecer melhor a ideia de me desfazer deles também. E queimei o resto. À medida que as chamas cresciam e as imagens se retorciam diante dos meus olhos, fui me dando conta de que, se os meus bens não tivessem sido roubadas, eu os teria vendido de qualquer jeito, ou doado a maior parte, pois não me faziam falta. Pertenciam a um passado que eu vinha queimando há quatro anos, e que acabara de virar cinzas.
(Na próxima semana, a terceira parte: Paonkovô? Um novo empurrão para peneirar o que sobrou dos sonhos e começar tudo de novo)
Foto: Márcia Lage
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