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Saiba morrer o que viver não soube

Atualizado: 26 de nov. de 2020

Barqueira de mim mesma numa remada de domingo, incorporo Virgílio, o poeta que conduz Dante Alighieri pelos caminhos do inferno em “A Divina Comédia”, para refletir sobre a morte, que não bate ainda à minha porta (baterá um dia, ou me pegará de surpresa)? Mas, que tem batido à porta de muitos dos meus amigos, com doenças pelas quais eles se culpam, como se morrer fosse algo que eles não conseguem impedir.

Estão muito apavorados e buscam a cura a qualquer preço, com um pé na ciência e outro nos tratamentos alternativos, agarrando-se à vida com o desespero de Dante. Alguns, que nunca rezaram ou acreditaram em Deus, voltam-se para a espiritualidade, tentando absorver de última hora uma religião que os salve da condenação final.

Talvez seja a representação cristã da morte que nos assuste tanto. A mulher de negro com uma foice na mão, as referências de dor, penação, humilhação, purgação e punição no clássico do poeta italiano e na moral da Igreja Católica. Não há outra vida depois dessa vida, mas uma promessa de ressurreição no fim dos tempos, onde todos seremos julgados de acordo com nossos feitos.

Na porta do inferno de Dante está escrito: “Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança”. É duro demais, ele diz ao poeta Virgílio, que traduz o letreiro: “Aqui, deixar convém toda suspeita; todo ignóbil sentir seja proscrito”. Longe de mim querer interpretar uma obra tão densa e bela quanto “A Divina Comédia”, mas o que Virgílio diz, no meu entendimento, é que na hora da morte devemos abrir mão de todo e qualquer apego.

E, se compreendemos que a hora da morte pode ser agora, num piscar de olhos, tanto para os doentes quanto para os sãos, renunciar a tudo que nos aprisiona ao desejo de imortalidade seja, talvez, nosso propósito permanente. Livrar-nos todos os dias dos sentimentos mesquinhos, não para sermos santos, mas para sermos humanos. Para que nossas culpas não nos levem a temer o inferno, nem nossa soberba nos prometa um paraíso que acreditamos merecer acima dos demais.

A diferença que há entre o pensamento cristão ocidental e o pensamento espiritual oriental é que, para os primeiros, a salvação vem por Justiça Divina, “que tarda, mas não falta”. Então, podemos pecar à vontade, e se arrependermos no final, seremos perdoados. É a trajetória que descreve Dante na caminhada dele pelo inferno e purgatório, até entrar no reino dos céus.

Para as filosofias orientais como o hinduísmo e o budismo, todos os estados de sofrimento que caracterizam o purgatório e o inferno, e os estados de paz e alegria que seriam do paraíso estão dentro de nós. Experimentamos esses sentimentos diariamente, e à medida que os identificamos e polimos, podemos permanecer mais tempo na serenidade e na paz. A morte, então, é apenas um retorno ao todo do qual viemos, e quanto mais próximos do divino que há em nós estivermos, mais leves iremos para o túmulo.

Pode-se escolher como viver e pode-se escolher como morrer, embora o suicídio seja condenado em todas as religiões. Temos que lutar pela vida, passar por todas as provações sem desistir nunca. A morte virá na hora certa, e aí deveríamos estar prontos para uma entrega total, para a aceitação absoluta desse grande mistério. É aí que nos acovardamos. Quem de nós é capaz de dizer, como os digladiadores na saudação à plateia: “Aqueles que vão morrer vos saúdam”! Henry More escreveu: "Em agonia ou perigo, ninguém naturalmente é ateu. A mente que não sabe para onde ir vai para Deus”.

E há muitos deuses sendo ofertados atualmente, numa enorme feira de milagres e perdões. É mais fácil comprar um desses que mudar a conduta, os hábitos, os vícios. Mesmo os que se curam costumam retornar à vida da mesma forma que antes, sem refletir sobre as lições que uma doença, ou um acidente, ou a morte de um parente ou amigo trazem em si sobre a necessidade diária de revisão daquilo que nos faz infeliz. O poeta português, Manuel Bocage fala disso no poema que dá título a esta crônica.

Meu ser evaporei na lida insana

do tropel de paixões que me arrastava.

Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana

existência falaz me não dourava!

Mas eis sucumbe Natureza escrava

ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube

ganhe um momento o que perderam anos

saiba morrer o que viver não soube.



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