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Desconectada na conexão

Dias desses tive um surto de ausência, daquelas que a gente experimenta quando pega um porre e, na manhã seguinte, não se recorda de nada do que falou ou fez. Foi assim: estava numa aula de canto, com o celular no silencioso, e quando saí resolvi dar uma olhada nas ligações e mensagens recebidas. Tomada por aquela aflição estúpida que os telefones de hoje em dia nos condiciona a ter, comecei a responder uma a uma. A Déa Januzzi estava on line e me ligou, e eu fui andando e conversando com ela.

Pronto, perdi o contato comigo mesma e com o caminho que eu fazia. Não senti o perfume das flores que ornam a subida do morro do Cemitério, nem ouvi os pássaros ocultos nas folhagens da mata linda do Forte Defensor Perpétuo, que encantam a minha descida até a ponte para a praia do Jabaquara, onde moro.

Atravessei a ponte sem prestar atenção ao rio, que é maior ou menor, mais limpo ou mais sujo, mais feio ou mais bonito de acordo com as marés. Na vazante, avisto caranguejos e siris, garças branquinhas voando baixo atrás de comida. Na cheia, pescadores vigiam cardumes subindo o leito e lançam suas tarrafas lá de cima, meninos nadam na embocadura e micos pulam nos galhos dos ingazeiros que adornam as margens.

Não vi nada disso, tampouco o mar à minha direita. Não dei fé se ele estava manso ou bravo, nem lancei meus olhos às ilhas que o decoram, às vezes azuis, se o dia estiver claro, outras vezes cinzas, se o tempo for nublado. Também não conferi, como faço sempre, se as canoas dos caiçaras estavam na água ou na praia: a vermelha, a verde, a azul e a amarela, e também uma multicolorida que se chama Shakira.

Não vi o João nem a mulher dele, que fazem arrastão toda manhã e toda tarde, recolhendo a proteína que Yemanjá manda para a família: camarões, tainhas, siris, robalos. E como não os vi, não os cumprimentei como deveria, olhos fixos no visor do celular, teclando mensagens, gravando textos, essa falta de educação que todo mundo comete nos dias de hoje.

Uma amiga que passou de carro me gritou e não ouvi. Mandou um torpedo: “Tá caçando Pokemon”? Que Pokemon que nada, estava fazendo coisas que não demandavam nenhuma urgência, podia ter desfrutado a paisagem, interagido com os conhecidos nesses gostosos 20 minutos de caminhada. Em casa, continuei abobalhada por mais uma hora talvez, vendo posts no facebook, lendo fofocas que pipocavam no MSN, conferindo emails.

A síndrome da “não presença” manifestou-se quando me deitei. Normalmente faço um balanço do dia, vejo o que foi concluído, o que ficou para depois, organizo mentalmente uma agenda para o dia seguinte, antes de dormir. Aí me veio a pergunta de bêbado: “Como é que eu cheguei aqui hoje?” Não me lembrava. Só recuperei a memória quando dei mais uma olhada no celular antes de desligá-lo, e revi a mensagem da amiga sobre se eu caçava pokemon. “Caramba, esqueci porque vim usando esta droga, não prestei atenção no caminho”, conclui, aliviada por perceber que não era um sintoma da PVC (Porra da Velhice Chegando).

Mas fiquei alarmada com a capacidade de alienação desses aparelhinhos, e preocupada com o futuro da humanidade. Sem presença, sem contato conosco mesmos e com o universo ao nosso redor, o que será de nós daqui a 10, 20 anos? Com essa tecnologia que não para de avançar e de nos desafiar, como entender nosso papel no mundo se não nos recordamos da nossa trajetória diária?

Radicalizei. Deixo o celular em casa quando saio por duas, três horas, me deletei de todos os grupos de bate-papo que não acrescentam nada ao meu desenvolvimento pessoal, desabilitei o facebook do telefone e, nos fins de semana, faço trilhas para lugares onde não há sinal de internet.

É uma prevenção ao novo vício que tem sido objeto de estudo dos cientistas sociais: a dependência tecnológica. Eu, que passei incólume pelas drogas que fizeram sucesso na minha juventude, vou perder meu juízo agora, por causa dessa nova substância psicoativa do século 21? Vou nada! Gosto de saber onde andam meus pés e o que pensa a minha cabeça.



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