top of page
Foto do escritorMárcia Lage

Construção

Há momentos na vida de uma geração que são vividos ao mesmo tempo: a adolescência e suas crises; o vestibular e a formatura; casamentos, nascimento dos filhos, a conquista da primeira casa, a aposentadoria e o envelhecimento. No final do anos 1990 e início dos anos 2000, minha galera chegava aos 40 com a necessidade urgente de sair do aluguel. A maioria comprou apartamentos financiados, mas eu e alguns poucos amigos resolvemos encarar o desafio de construir nossas próprias casas.

Nossas conversas passaram a ser sobre pedreiros e projetos, preço dos tijolos e das telhas, e em meio a tantas crises econômicas que não nos deixam planejar direito o futuro, fomos inaugurando nossos sonhos. O meu demorou cinco anos para virar realidade, e meu amigo e chefe Luiz Gonzaga Mineiro foi conhecer a obra, levando de presente uma muda de Lima da Pérsia, que plantou pessoalmente no pomar que já começava a ser formado, após a vitória da construção.

Sentados num banco improvisado com refugos da obra, no jardim que desabrochava com plantas catadas aqui e ali, olhamos as paredes de tijolos à vista e ele comentou: “Nós, jornalistas, precisamos fazer algo sólido com nossas próprias mãos, pois nosso trabalho é muito volátil. A notícia que damos hoje já terá sido esquecida amanhã. Somos substituídos da noite para o dia em nossas empresas. Nossos salários e nossos cargos são mutáveis e instáveis. Por isso é tão gostoso construir, plantar, colher. Minha casa e meu filho são as minhas únicas obras concretas”, concluiu.

Concordei em parte. Não sabia, naquele momento, o que era mais estressante: colocar um telejornal no ar todas as noites ou fazer uma casa. Não havia sido uma empreitada fácil. Quando me aposentei e me mudei para Paraty deixei para trás os dois desgastes. Jurei morar de aluguel para o resto da minha vida, com liberdade para trocar de cidade, de Estado e de País quando bem entendesse. Fiquei leve e volátil. A vida, no entanto, se encarrega de cobrar da gente a fatura das coisas que têm de ser feitas de novo, sabe-se lá por que.

Uma sucessão de fatos me levou a vender a casa de Brasília, e para ficar livre do Imposto de Renda declarei que compraria outro imóvel com o lucro obtido. O lucro foi pouco, só deu para um terreno. Quando fui cercá-lo, a lembrança do prazer que tivera ao erguer do nada uma casa bem gostosa acirrou em mim o desejo de construir outra vez. E antes que pudesse desistir, já havia encomendado um projeto arquitetônico para poder ter algo com o que sonhar e realizar concretamente.

As circunstâncias eram melhores, porque a primeira casa eu fiz por necessidade, com pouco dinheiro e nada de experiência. A situação se invertera. Agora, o que eu tinha pela frente era o desafio de por em prática o que aprendera, fazer uma espécie de prova que testava se: 1) Eu tinha domado a impaciência; 2) Me tornado mais realista; 3) Adquirido educação financeira; 4) Desapegara dos supérfluos; 5) Elegera o que de fato era importante para mim, para o meu conforto e prazer.

Comecei a construir e a filosofar, como meu velho e querido ex-chefe. Diferentemente do solo do cerrado, duro e compacto, meu terreno era nada mais que um mangue mole e volúvel, sensível ao movimento das marés. Tive que drená-lo com muitos caminhões de terra, salvando o máximo que pude da vegetação original. Sobraram duas palmeiras e uma gameleira abraçada a um coqueiro, morada de pássaros que lá ficaram, gratos pela preservação de seu pequeno habitat.

Deu-se início à fundação, a parte mais sem graça da casa, a que ninguém vê, mas que se não for bem feita causa muito aborrecimento futuro. Pode ocorrer infiltração de água do subsolo na base, provocando umidade, mofo, rachaduras, inclinações. A correção desses defeitos leva tempo, custa caro, e nem sempre o resultado é satisfatório. O destino dessas construções desatentas ao tipo de solo em que são erguidas costuma ser o desmoronamento ou a demolição, com prejuízo dos investimentos aplicados.

Por segurança, investi um terço do valor estimado da obra só em ferros, cimento, areia e brita. Queria uma casa inabalável, e à medida que a trama da fundação era construída, percebi claramente a tentativa de reparar uma estrutura interna frágil, um medo psicológico de eu também desmoronar, afundar, sucumbir. Afinal, somos produto de uma construção da qual não participamos. Recebemos o baldrame pronto, e é sobre ele que edificamos nosso EU. Possivelmente gastamos também um terço ou mais de nossas vidas tentando consertar os defeitos de origem, para não sermos uma obra condenada.

As etapas da construção de uma casa repetem as diversas fases da nossa vida, e agora estamos eu e a obra nos arremates finais. Há despojamento nas minhas escolhas, mas um gosto por tons alegres e aconchego. Embora pequena e minimalista, a casa tem um quarto confortável para hóspedes e um espaço agradável de convivência, que inclui cozinha e sala juntas, onde todos podem partilhar receitas, sonhos, esperança e amizade.

Não vou erguer muros. Cercas vivas e jardins despertam bons sentimentos, ao contrário das fortalezas urbanas cercadas com arame farpado, que insultam e segregam. Deixei a maior parte do terreno para a recomposição do mangue que eu tive que destruir, e numa espécie de TAC (Termo de Ajuste de Conduta) com a natureza, terei energia solar, coleta de água de chuva, fossa por evapotranspiração (tanque com bananeiras) e compostagem do lixo orgânico. São coisas que aprendi com abnegados ecologistas. A exemplo deles aspiro ser uma sementinha que luta por brotar no imenso deserto da ignorância ambiental. Uma casa é um ninho, não um bunker.




3 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page