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Abril despedaçado

Eu não tinha idade para ir à escola quando a Ditadura foi instalada. A notícia chegou no jornal de primeiro de abril, dia da mentira, mas ninguém duvidou. Fez-se silêncio nos bares e a impressão que eu tive é que depois daquele dia o povo começou a falar baixo e a rir menos. Houve gente que soltou foguetes e insultos, e o padre celebrou uma missa para exorcizar de vez a ameaça do comunismo. Falou que os comunistas eram pessoas sem temor a Deus, que pregavam ferraduras nos pés de adultos e comiam criancinhas. Fiquei apavorada, mas meu pai deu risada e explicou: “É exatamente o contrário, minha filha. Exatamente o contrário”. Não sei se foi coincidência, mas à medida que crescíamos meus pais ficavam mais pobres. E aconteceu nosso primeiro êxodo. Foi na nova cidade – essa mesma que tem uma mineradora que mata um monte de gente - que eu vi pela primeira vez um dos militares que se alternavam no poder. A comitiva do ditador passou debaixo da nossa varanda e estávamos lá, sem bandeira e sem desejo de acenar para ele. Talvez por isso tenhamos atraído seu olhar, olhos que eram dois fuzis azuis aterrorizando ainda mais o nosso medo: de passar fome, de não realizar nossos sonhos no país sem futuro. A censura não nos deixava saber das torturas e mortes que aconteciam nas prisões, mas éramos torturados pela carestia, pela inflação que chegava a 100% ao ano. Meus pais viviam angustiados e nervosos. Forçavam nosso crescimento, para que chegássemos logo à Faculdade, conseguíssemos um diploma e acabássemos com aquela vida miserável de vender o almoço para comprar a janta. Muitas noites os ouvi chorando, cansados da luta e das derrotas diárias. Ele, separando do pouco que tinha para pagar impostos, ela, fazendo a lista do que podia cortar das nossas necessidades. O dinheiro se desfazia como água, o que se comprava num dia não se comprava no outro. Foi nessa agonia que passei no Vestibular, a Ditadura seguindo sua marcha, partidos políticos extintos, Congresso fechado, pessoas perseguidas, medo e silêncio. Aos 21 anos eu me tornei jornalista, no exato momento em que o povo reagiu. A imprensa burlava a censura, os sindicatos se fortaleciam, passeatas imensas exigiam a volta da democracia e dos exilados. Os militares no comando começavam a ceder, prometendo abertura democrática lenta e gradual. Demorou mais três anos para que houvesse a Anistia. Foi aí que ficamos sabendo das tenebrosas histórias de cada um dos “terroristas”. O que me coube conhecer mais de perto tinha uma cicatriz na cabeça provocada por goteira fervente que lhe caiu de um cano dias a fio, num cubículo tão pequeno que não tinha como se esquivar da dor. Uma das orelhas era rasgada ao meio, por horas de choques elétricos. Mas o que ele sofrera ainda era pouco comparado a outros e outras, que voltavam em cadeiras de rodas, permanentemente aleijados. Ou que não regressaram, porque se soube então que tinham sido assassinados. Os sobreviventes mostraram-se incansáveis. Começaram a trabalhar imediatamente pela retomada da Democracia: organizaram partidos, escreveram livros, candidataram-se e foram eleitos, enchendo o Brasil de ideias novas. Os dias eram de esperança, e num especialmente iluminado e fresco meu amigo revelou que adorava o mês de abril. Tinha apanhado tanto, mas tanto, nos anos em que estivera preso, que perdeu a noção do tempo. Era retirado da solitária e torturado, depois jogado lá de volta, quase sem vida. Numa incerta manhã acordou todo moído de mais um desmaio e reparou pela primeira vez numa nesga azul no alto da cela. Um pedacinho de céu se revelando na ínfima abertura. Deduziu que era abril, mais um abril despedaçado. Respirou aquela cor e encheu-se de esperança. Não desistiria do sonho de um Brasil com menos desigualdade social, enquanto permanecesse vivo. Continua na luta até hoje. Que o sacrifício dele e de tantos outros tenha valido para que as novas gerações jamais conheçam uma Ditadura. Precisamos de Justiça, não de heróis. Liberdade acima de tudo e Democracia acima de todos. #Ditaduranuncamais.



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