Em dias de Olimpíada, quando atletas se declaravam umas às outras e as emissoras de TV davam close de namoradas das jogadoras entre as torcidas, leio na internet a seguinte notícia: “Associação ajuda idosos a se assumirem gays na Agentina”. Subtítulo: “Criado por um casal de lésbicas, centro promove grupos de apoio e atividades culturais para homossexuais com mais de 65 anos”. Como o meu tema agora é o envelhecimento, sigo lendo o texto. Ele conta histórias de mulheres que foram casadas, tiveram filhos e que, na velhice, não suportaram mais a mentira em que viviam e buscaram apoio para sair do armário. Fico intrigada que a reportagem não faça referência a homossexuais masculinos na tal organização portenha, e penso que talvez as mulheres mais velhas (porque as jovens estão se assumindo cada vez mais) estejam um pouco atrasadas nesse movimento que os gays homens vêm construindo desde os anos 1980.
Atrasadas, mas ainda assim na luta, pelo que li na reportagem. Fiquei imaginando o quanto deve ser penoso viver relacionamentos sexuais contrários ao desejo, por convenção social ou preconceito. As personagens da reportagem falam que elas mesmas é que não se aceitavam, tinham medo do julgamento dos pais e dos filhos, e que sentiram alívio quando se assumiram, recebendo mais apoio do que esperavam. Recordei de um caso semelhante, de revelação homossexual na terceira idade, de um casal de jornalistas que mal conheci, no início da minha carreira. Um era solteiro e o outro casado, e tinham um caso desde a juventude. Até que o casado revelou tudo à família e disse que não poderia morrer naquela falsidade. Foi compreendido.
Sou da opinião que ninguém pode viver na falsidade, em nenhuma etapa da vida, mas admito ser difícil para um jovem não assumir papéis que não lhe pertencem. Por imitação, respeito, admiração, pressão social, medo, muitos de nós vamos nos transformando em cebolas ao longo da vida, com camadas e camadas de máscaras que usamos em diferentes situações. Mas, ao ultrapassarmos a marca dos 50, é urgente que comecemos a nos descascar, a buscar o nosso cerne, a encontrar nosso “Dharma”.
Dharma é uma palavra do idioma antigo sânscrito, que significa “aquilo que sustenta, que mantém“. É um dos principais conceitos do Hinduismo, do Budismo e do Jainismo, e se traduz por lei universal da natureza, que se expressa em cada ser e, simultaneamente, em todo o universo, através de sua influência constante e cíclica; a justiça ideal que faz com que as coisas sejam o que elas são, ou o que devam ser.
Resumindo: ninguém pode viver fora da sua natureza, sem causar infelicidade a si e aos outros. Por isso penso que, se não encontramos o nosso “Dharma” até os 50, não podemos passar mais nem um minuto sem buscá-lo dentro de nós, dia e noite. E de encarar de peito aberto o que somos, seja o que for. Acredito que o pior de nós, a nossa sombra mais assustadora, já tenha se esvanecido nas diversas crises que enfrentamos antes da meia idade, e o que vamos libertar não é nenhum monstro, mas o melhor de nós. O que ficou escondido por causa dos pais, dos filhos, da sociedade, da tradição, da religião, do trabalho.
Para promover essa libertação, no entanto, é necessário conhecer-se. Não dá para chegar à velhice com a cebola tão crescida que as cascas não se desfazem. Impedindo de vir à tona outra pessoa desconhecida, alguém que esmurra o armário para sair e respirar. Pode ser um gay, um artista, um casado querendo divorciar-se, uma alma livre soterrada por camadas e mais camadas de mentiras, frustrações, desilusões, medo, vergonha, raiva, culpa, tudo prensado em meio século de vida ignorada, sufocada, desperdiçada em disfarces.
Gasta-se muito dinheiro em pintar e repintar esse sepulcro, quando lá dentro a alma luta por libertar-se. Aos 50, é hora de começar a desintoxicar-se, de fora para dentro, de dentro para fora. O corpo pede menos sal, menos açúcar, menos álcool, menos cigarro, menos tudo que apodrece, empedra, emperra, limita. A alma clama por sinceridade, respeito, compreensão, perdão, felicidade. Não há mais tempo a desperdiçar. O que ficou oculto terá que vir à tona, ou nascerá de nós um velho amargo, sem paz consigo mesmo e com o seu tempo.
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